Traumas
Foi numa terça-feira que ele chegou, iluminando um dia chuvoso e frio de inverno. Esperei no hospital, abobalhado como todo pai, suando frio enquanto a enfermeira sorridente não chegou com a notícia – era um menino, saudável e forte...
Dali por diante, minha vida se alterou completamente: noites mal dormidas, mas dias de alegria, fraldas sujas, febres e arranhões, e olhos lavados de lágrimas com os gorjeios, as travessuras, os sorrisos...durante toda sua infância, meu filho foi o passarinho que enfeitou a janela pela qual eu espiava para a vida...
Mas algo mudou, no entanto, e acho que eu não percebi...eu trabalhava demais, me preocupava demais, fazia tudo demais, para notar...não percebi as olheiras comendo aos poucos o olhar brilhante, a palidez e a magreza por baixo das roupas largas de adolescente: ser magro era a moda do momento, eu pensava...e depois estuda demais, faz esportes, está sempre ocupado, sempre fora de casa, deve estar com amigos...Amigos que eu nunca me preocupei em saber quem eram, de onde vieram, o que faziam; meu filho passou a ter uma vida dupla, da qual eu me afastei quase que sem perceber, achando normal deixar de ser o herói e amigo pra ser somente o provedor: são coisas da vida, os filhos crescem, separam-se da gente, adolescer é assim, é normal...eu ensinei tudo a ele, falei do certo e errado,com certeza ele deve saber se virar.
Eu queria que ele fosse feliz...prá que tocar em assuntos desagradáveis, pra que comentar o olhar triste que eu via por cima da mesa de jantar, perdido, parado, vazio...porque tumultuar a vidinha pacata com perguntas profundas, que certamente trariam respostas amarguradas, mudar a rotina trilhada todos os dias... Eu procurava alegrá-lo com meu jeito animado e brincalhão, lhe concedia tudo o que pedia, tentava encher-lhe a vida com meus presentes, sempre dizia sim a tudo, porque assim eu teria garantido o seu amor, sem conflitos, nem traumas.
Onde eu errei, se só queria seu bem, se lhe dei tudo...? Por que essa notícia que me chega assim, no meio da noite, sorrateira, sórdida, fria como um corpo coberto de jornais...? Talvez porque eu nunca quis conhecer o lado sombrio daquele que veio de mim, o fardo humano que todos carregam...pelo medo de encontrar no fundo de seus olhos os mesmos medos que os meus, os mesmos traumas, os mesmos desejos desfeitos...me perdoe, meu filho, por não me reconhecer em você, e por não ter a chance de conhecer o homem que você seria um dia; por fantasiar a vida, como um artista no picadeiro, e temer entrar nos bastidores e despir a roupa colorida que eu usava na sua frente. Acho que hoje sei que você preferiria que eu às vezes vestisse meu casaquinho surrado, minhas bermudas furadas...e me sentasse ao seu lado no degrau da porta, sendo apenas um velho pai meio chato, meio ignorante, mas me mostrando igual a você em suas fraquezas e medos...
Onde estiver agora, filho meu, ouça a voz silenciosa do teu pai, que por toda a vida sempre quis te dizer, apenas...Eu Te Amo...!
Bíndi
Imagem: Paren D.Z. Klyuchi Art
(*Este é um texto de ficção)
(*Este é um texto de ficção)